Este projeto foi contemplado pela Fundação Nacional de Artes – FUNARTE no edital Bolsa Funarte de Residências em Artes Cênicas 2010.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

MÁSCARA NEUTRA E TRAGÉDIA GREGA






Olá queridos!
Como viram, na postagem anterior falei um pouco sobre o trabalho de Gaulier em Le Jeu, os princípios de sua pedagogia e alguns acontecimentos em aula. Agora quero dedicar um espaço para realizar algumas colocações sobre o trabalho com a Máscara Neutra e a Tragédia Grega, último módulo que fiz na Ecole P.G. Bem, cabe inicialmente dizer que Gaulier é um Mestre, sim, com M maiúsculo. Quando saí de Le Jeu, achei que estava por dentro de sua pedagogia, das ferramentas que ele utilizaria em todos os demais territórios, o que, por um lado é verdade, pois, como exposto anteriormente, Le Jeu é a base. Mas Philippe é uma cebola infinita, quanto mais se tira uma camada, mais aparecem as novas, mais surpreendentes elas são. Existe algo em sua pedagogia que é impossível de delimitar conceitualmente (ao menos neste momento), é o que ele traz em seu olhar, uma capacidade de ver a partir do agora o momento seguinte. Não se trata de apenas dizer algo para os atores em relação ao qual tais atores não tinham consciência, mas sim de um poder quase mediúnico de prever se o que o ator está fazendo possui potencial para ser desdobrado em algo interessante ou já nasce morto. Bem, deixarei estas colocações como questões a mim mesmo, que, se eu for capaz, tentarei desenvolver mais adiante.
A Máscara Neutra: Primeiro dia de aula! Gaulier nos ofereceu uma história engraçada sobre o surgimento da máscara, envolvendo personagens como Jaques Copeau, Jean Dasté e sua esposa (que, se não me engano, era filha de Copeau). Tenho a história gravada (gravei no mp3) em meu notebook que deu pau, espero que o técnico consiga recuperar os arquivos, e, assim, depois quero traduzi-la e colocá-la aqui. Mas, pelo que eu me lembre, Gaulier falou sobre as aulas que Dasté tinha com Copeau, e que, aquele estava atormentado, querendo um tipo de máscara que pudesse servir de base para todas as máscaras, quando então a mulher de Dasté sonhou que o marido apareceu pra ela sem cabeça (ou algo do tipo), e, a partir disso, Dasté teve como um insight, o nada, o neutro, a Máscara Neutra!!! De qualquer forma fica um tanto claro que esta é uma história extra-oficial sobre o surgimento da máscara neutra, contada para divertir-nos, com um senso de humor bastante específico que é o de Gaulier. Juro que tentarei colocar aqui a versão integral da história assim que meu computador for recuperado!!! Bueno, uma das coisas que Philippe também disse no primeiro dia foi que A MÁSCARA NEUTRA SURGIU PARA LIBERTAR O ATOR, E NÃO PARA APRISIONÁ-LO! Penso que isso é um ponto fundamental trazido por Gaulier. Já ouvi muitos atores dizendo que têm pavor da máscara neutra, que sempre vão muito mal, que são execrados porque não possuem um corpo X ou Y capaz de dar conta da exigência física da máscara. Para Gaulier, ainda que seja muito importante a técnica corporal do ator (ele nunca disse isso, mas é perfeitamente notório que agrada mais ao mestre os trabalhos corporalmente mais sofisticados), é muitíssimo importante o prazer do ator sob a máscara, um toque daquilo que faz do técnico algo que chega ao território poético. Ou seja, um ator sob a máscara nunca pode ser chato. Não pode ser entediante ver um ator com a máscara. E, por vezes, mesmo que determinado ator não tenha atingido um nível técnico mais preciso, se este compartilha sua diversão com a platéia, está em relação à esta, Gaulier deixa-o em cena realizando seu exercício. È importante esclarecer que “compartilhar a diversão” não significa fazer uma gracinha para a platéia, mas sim, colocar em seu trabalho um “diferencial criativo” capaz de convidar a platéia a criar com você através da imaginação desta, ainda aqui a relação antes exposta (no texto de Le Jeu) entre prazer imaginação (Gaulier costuma dizer que o prazer do ator abre portas na imaginação do espectador) está presente. Outra questão que creio ser interessante apontar é sobre algo que ouso chamar de “pedagogia mínima” (me veio agora isso) de Gaulier. Em suas propostas de exercícios para a Máscara Neutra, Gaulier não expõe quaisquer regras demasiado restritivas, nada do tipo “você não pode fazer isso, você tem que fazer aquilo”... Basicamente, Gaulier lança uma proposta para 5 (as vezes mais, as vezes menos) atores realizarem em cena, como, por exemplo, “fazer a passagem do inverno para a primavera sob a máscara”. Os atores realizam a sua proposta, e, no final, ele tece alguns pequenos comentários do tipo: “isso estava chato ou eu estou completamente bêbado?”; “eu mataria este ator”, “se vocês estivessem em uma guerra e uma mulher dessas estivesse esperando vocês em casa, vocês provavelmente iam preferir morrer lutando pelo seu país, não?” (se referindo ao trabalho de alguma atriz); “não foi tão ruim” e por aí vai. Não existe em Philippe o que a máscara neutra é e o que ela não é, como ela age e como ela não age, isto é, não existe um corpo de “verdades” que ele te apresenta e ao qual você deva respeitar para fazer os exercícios. Ele realiza as propostas sem dar muitas explicações técnicas, e vai deixando em cena aqueles que de alguma forma estão conseguindo criar algo interessante com o que ele está propondo. Você tem que criar alguma coisa, e não reproduzir um edifício de princípios dados de antemão. Mas é reconhecível que os princípios vão sendo trabalhados pelo mecanismo de exclusão de Gaulier: se vc está sem tônus, o tambor bate (o tambor costuma bater quando Gaulier não gosta de um ator em cena e, portanto, finaliza seu exercício), se você está fazendo muito barulho com os pés no chão, o tambor bate, se você está concentrando seu trabalho nas extremidades do corpo, o tambor bate e assim por diante. Os princípios neste sentido são reconhecidos e formulados pelos e para os atores depois da experiência, e não antes dela, isto é, não são um ideal ao qual você tenha que atingir. Portanto, nunca chegamos a uma definição do que seja a Máscara Neutra para Philippe, a Máscara nunca é um fim em si mesma, mas sim uma ponte para desafiar o ator a corporificar imagens, paisagens, objetos, cores etc.
Alguns materiais que trabalhamos na Máscara Neutra foram:
Viagens e temas: O nascer e o pôr do sol!; A máscara na floresta; O lançar a pedra no mar; O Adeus ao Barco e outros
Cores: Laranja, verde, rosa, azul, vermelho e amarelo
Animais: Formigas, Aranhas, Ratos, Elefantes, Girafas
Elementos: Ar, Água, Terra, Fogo
Outros: Rocha, Prédio, Vidro, Batatas Fritando, cola, óleo e outros.

Bem, como vimos acima, são muitos os materiais trabalhados. E alguns materiais eu coloquei a título de referência ampla, pois, no trabalho com os elementos da natureza, por exemplo, Philippe sempre fornece diversas imagens. Neste sentido, nos dias em que trabalhamos a água, Philippe desdobrou-a em possibilidades como: um córrego onde passa um pequeno fio de água, a nascente de um rio, uma cachoeira, o mar, a chuva etc... Não cabe aqui esmiuçar cada imagem dada por Philippe e seus desdobramentos, mas o mais importante é que, na compreensão do trabalho de Philippe com a máscara, o que extraí é a extrema liberdade em termos de proposição de elementos a serem explorados, mas, também, o rigor na exigência desta exploração. Relacionado a liberdade da qual falo, Gaulier disse um dia “Eu posso dizer para os atores fazerem o laranja e isso ser um completo desastre! Mas pode ser que algum ator faça um trabalho lindo. Eu nunca sei o que pode ser um estímulo para um ator.” E é por aí que o trabalho acontece! Gaulier em conversas no final da aula, sempre dizia-nos para prestarmos atenção naqueles elementos com os quais tínhamos tido maior identificação, com aqueles que nos ajudavam a criar, que serviam como estímulo, para, se possível, buscarmos um aprofundamento nestes materiais..
Após um tempo em que já estávamos trabalhando com a Máscara Neutra, Gaulier começou então a adentrar o território da Tragédia. Já na segunda semana da Máscara Neutra, Gaulier pediu-nos para que decorássemos um trecho da Ilíada onde o narrador descreve um enfrentamento entre Heitor e Aquiles. Em alguns trabalhos com a máscara, Gaulier bipartia seu foco entre trabalhar um material, o fogo, por exemplo, o qual tínhamos que dar corpo sob a máscara, e, em determinado momento, dava um stop em seu trabalho e pedia para que uma assistente tirasse a máscara dos atores que estavam fazendo o exercício, a fim de que estes, mantendo o estado de determinado material conquistado sob a máscara, sobrepusessem, aos pouquinhos, as palavras do texto da Ilíada. Gaulier sempre pontuava para que não disséssemos o texto verborragicamente, e lhe agradava mais que mantivéssemos o estado e aos poucos as palavras saíssem quase como espasmos dos mesmos. Sempre interessava à Philippe que a palavra saísse calcada num impulso que antes de tudo é físico, e, por algumas vezes, utilizava de estratégias diferentes para fazer um ator entender esta dinâmica. Uma destas estratégias era a dos Sleepers. Esta consistia em botar o ator que estava em trabalho em frente à platéia, ao fundo do espaço cênico, e pedir para que outros dois atores “dormissem em suas pernas”, isto é, que cada ator deitasse no chão agarrando cada perna, gerando uma resistência para o ator caminhar, e provocando a necessidade de um impulso forte para que este conseguisse dar um passo. Quando o ator então dava este impulso, ele podia aos poucos colocar as palavras de seu texto, numa dinâmica impulso-texto, tentando diminuir o máximo de tempo do lapso entre um e outro, mas nunca colocando o texto antes do impulso físico. A metade deste segundo módulo, Máscara Neutra e Tragédia, mesclou um território e outro, quando então nos dedicamos a experimentar qualidades da máscara com os textos da Ilíada. Depois deste primeiro acercamento à Tragédia, pudemos escolher nossos textos trágicos, aqueles com os quais gostaríamos de trabalhar. Os alunos puderam aqui também escolher se trabalhariam em duplas ou sozinhos. Philippe propunha inicialmente a mesma dinâmica descrita anteriormente com a Ilíada, basicamente pedia-nos para que trabalhássemos um material visto na Máscara Neutra com o qual tínhamos nos identificado, e, posteriormente, solicitava-nos que falássemos o texto com tal material. Esta foi uma primeira aproximação, não sei exatamente, mas, para mim, me pareceu que Philippe estava se permitindo experimentar novas direções em sua própria pedagogia. Logo após, Gaulier começou a trabalhar cena por cena, focando, é claro, o ator, seu prazer em jogar os personagens trágicos. Philippe buscava conosco isso que ele chama de “beleza”, o que faz com que a platéia ame um ator segundo o mestre. Para isso, Gaulier costumava ver uma primeira proposição de cena realizada pelos atores, e, em cima desta proposição, o mestre agregava uma nova situação. Por exemplo, comigo, que peguei Tirésias em Antígona para trabalhar, Philippe propôs que eu jogasse uma velha que faz previsões, sensitiva, uma espécie de cartomante. Mas não é randomicamentre que ele propõe isso, já me conhecendo desde outubro, Philippe inferiu que este fosse um contexto no qual eu teria prazer em jogar a personagem. Inicialmente confesso que fiquei um pouco confuso, pois, de cara, entendi que Philippe queria me jogar num território cômico, me travestindo e me propondo esta velha senhora como mote de jogo. Mas depois pude constatar a potência da proposta de Gaulier, e, num segundo momento, consegui encontrar o prazer em jogar aquela figura, ainda que ela pendesse mais ao cômico do que ao trágico. A grande questão para mim então era mudar o registro (do cômico para o trágico) mantendo o prazer, uma questão que segue em nível de pesquisa pessoal. Infelizmente não tivemos muito tempo para trabalhar pessoalmente um por um com Gaulier na tragédia, pois o mesmo ficava muito tempo trabalhando só com algum ator em aula, e, por vezes, ficávamos quase uma semana somente vendo o trabalho de Gaulier com outros atroes que ainda não tinham trabalhado com o mestre. Mas aos poucos foi ficando cada vez mais claro o trabalho de Gaulier na Tragédia, principalmente na última semana. Como na Máscara Neutra, também aqui Philippe nunca falou “tragédia é isso, tragédia é aquilo... vocês tem que ser assim, fazer assado”. O que interessa a Philippe é a qualidade do jogo que se estabelece em cena, e, mesmo que por vezes este jogo toque o cômico, para Gaulier parece que o grande foco é que o ator mantenha a consciência do personagem como uma espécie de marionete, nunca buscando uma conexão emocional direta com os personagens, mas sim, divertindo-se em manipulá-los, fazer isso com inteligência e perspicácia. Por isso, para cada ator, ele lançava uma proposta diferente, muitas vezes fugindo ao que imaginamos de tragédia clássica (com aquelas túnicas e adornos antigos), tinha, por exemplo, uma Cliptemestra que era puta de cabaré, uma Cassandra inspirada em Hitler, uma Electra colegial e por aí vai... Creio que grande parte do grupo, a maioria inclusive, conseguiu assimilar a proposta de Philippe com a Tragédia Grega já na última semana, as sutilezas, os interstícios e filigranas de suas direções para cada ator. Mas o que fica é a liberdade para se trabalhar neste território, e os momentos onde alguns atores chegaram num registro trágico extremamente denso fugindo completamente de qualquer estereótipo acerca do mesmo!

LE JEU



Olá amigos! Desculpem o longo período sem postar algo aqui, mas a vida está bem corrida por estas bandas. Nos últimos tempos, além de estar diariamente na Ecole Philippe Gaulier das 14h às 18h, tive que procurar apartamento, legalizar minha situação na França (pois mesmo já com vistos de estudante, temos que realizar procedimentos aqui pra que o visto tenha real validade, em outra postagem explicarei o que é isso), organizar a viagem de férias da escola, e, pra ajudar, o meu computador resolveu estragar em terras européias, mas uma amiga levou-o para o Brasil para realizar um conserto e ele deverá estar de volta junto com ela em janeiro.
Bem, agora quero expor alguns elementos que pude observar-vivenciar com Gaulier no primeiro módulo que fiz na escola, o Le Jeu. Este é o módulo onde o ator pode compreender todos os fundamentos do trabalho do Gaulier, e, por isso mesmo, é importantíssimo pra quem quer ter uma experiência com o mestre. A escola oferece a possibilidade de que um ator venha e faça qualquer curso sem necessitar de um outro como pré-requisito, o que é realmente muito bom e libertador, mas, se alguém pretende vir fazer algum curso para conhecer o trabalho de Gaulier e quem sabe fazer demais cursos posteriormente, eu indicaria o Le Jeu como o primeiro passo, pois mesmo na Máscara Neutra/Tragédia Grega, Gaulier seguiu lançando mão da terminologia de base de sua pedagogia, terminologia esta que é trabalhada na prática em Le Jeu. Abaixo tentarei expor e refletir sobre pontos que julgo fundamentais no trabalho de Gaulier em Le jeu: o prazer, o ponto fixo, o Jogar em Maior e em Menor e a cumplicidade.

O prazer (o prazer da vida)
Este é talvez o mais basal dos princípios. Segundo Gaulier, é o prazer do ator o elemento capaz de abrir as portas da imaginação no espectador, é o que dá credibilidade a tudo o que o ator faz em cena. Para clarear esta noção, vou dar dois exemplos de trabalhos num mesmo exercício e de estratégias utilizadas por Gaulier para, digamos assim, “convocar o prazer do ator em cena”.

1º Exercício: Passar a Bola em cena:
Neste exercício dois atores vão para trás das coxias (há duas grandes coxias na sala de trabalho). Em cena estão dispostos uma mesa, uma cadeira e uma bola em cima desta mesa. Um ator entra em cena e deve começar a “jogar em maior”, neste momento sozinho em cena. Jogar em maior significa agir tentando manter o interesse da platéia em si, manter a platéia amando-o, quando você é o maior, por mais que tenha alguém em cena com você, é você que deve “aparecer” e conduzir o jogo a ser realizado. (mais abaixo está um tópico onde esclareço melhor o que significa jogar em maior e menor) Não há aqui uma história a ser seguida como mote de improvisação, a mesa está disposta como um elemento que o ator pode usar se quiser, pode, por exemplo, “preparar um café da manhã”, cantando, dançando, se atrapalhando com as comidas etc. A grande idéia é de que o ator perceba se a platéia está com ele ou não, e, quando se dá conta de que perdeu o interesse da platéia em si, o ator pega a bola que está em cima da mesa e joga para o ator que ainda está na coxia, quando então este entra em cena jogando em maior. Cada ator segue com a bola na mão e jogando em maior se a platéia está interessada nele, do contrário, quando perceber que a platéia começa a enfadar-se, deve jogar a bola para o outro, passando o foco para este então jogar em maior. Numa das vezes em que fizemos este exercício, uma das colegas entrou em cena e estava com uma dificuldade enorme em improvisar com os elementos dispostos, visivelmente sobrecarregada por estar em cena sozinha e tendo que manter o interesse da platéia. Gaulier tem um olho especializado pra sacar e trabalhar sobre isso em um ator. Para Gaulier, “você não pode QUERER ser um ator em cena, você deve SER um ator em cena” (Gaulier), e, neste sentido, você tem que querer permanecer ali, ser amado pela platéia, provocá-la à embarcar no seu jogo. Bem, observando a impassividade da atriz em questão, Gaulier pediu que a mesma parasse com o que estava fazendo e apontasse dois homens na turma que seriam “uma possibilidade para ela”, isto é, dois garotos pelos quais a atriz sentia alguma atração. Depois de escolhidos os dois, Gaulier pediu que a atriz fosse para trás das coxias e que os dois fossem junto com ela e dessem alguns beijos nela lá, que agarrassem ela e por aí vai... Em determinado momento, Gaulier pediu então que ela entrasse em cena, depois de ser beijada pelos dois, e a atriz entrou com uma presença completamente diferente da forma com que estava anteriormente. É difícil explicar, mas um certo constrangimento mesclado com um prazer perante ao público davam à ela uma espécie de luminosidade (na falta de outra palavra vai esta mesma) em cena, como se ter sido beijada atrás das coxias acendesse nela uma vontade mais ferina de estar em cena, de jogar em maior, de relaxar o sobrepeso e propor um jogo que de fato nos capturou na platéia.

Outro exemplo se deu com uma atriz francesa e comigo. Ao se ver entediado com ela, Philippe criticava-a fazendo constantemente referência à sua “boa educação francesa”, como se esta limitasse as possibilidades expressivas da atriz. Então, semelhante ao trabalho que ele tinha realizado anteriormente com a atriz inglesa (como descrito acima), Philippe pediu que a atriz escolhesse alguém na platéia para dançar com ela. Ela então escolheu um ator inglês. Philippe colocou samba para que os dois dançassem, mas o ator inglês logo se sentou, ao que parecia um tanto envergonhado por “quebrar seus quadris”, deixando a francesa desamparada em cena e em frente ao público formado pelos colegas. Então me candidatei e fui dançar com a moça. Resolvi investir alto no divertimento, tentando também convidá-la a “sair de seu centramento francês”, e aos poucos Philippe pediu para que eu saísse, depois que tinha conseguido com a atriz convocar um prazer especial ao sambarmos juntos. Philippe então trabalhou com ela no sentido de manter o divertimento que ela tinha conquistado sambando comigo mas realizando outras ações. Não vou descrever o trabalho em seus detalhes, mas, basicamente, o fato de termos sambado juntos possibilitou que a atriz encontrasse uma paradoxal região onde para estar mais confortável em cena Philippe exigiu dela um desconforto “na vida”, isto é, uma quebra com caracteres de sua própria cultura.
Poderíamos nos perguntar: tá, mas então quer dizer que precisamos sambar ou sermos beijados para entrarmos em cena plenos? NÃO. Philippe, ao responder questões sobre o prazer neste mesmo dia de trabalho, disse algo como: “Buscamos o prazer! Para isso, hoje alguns dançaram samba, outros foram beijados (...) Mas nunca é o prazer do beijo ou do samba o que buscamos, e sim O PRAZER DA VIDA”.
Bem, não me considero capaz de explicar o que é o prazer da vida a que Philippe se refere. Às vezes Philippe chama isso também de beleza, aquilo que faz com que a platéia ame o ator. Embora difícil de explicar neste momento, posso dizer que vejo isso diariamente em meus colegas e em mim, algo que faz com que minha escolha pelo teatro seja permanentemente questionada e reafirmada, a certeza de que de tudo o que é feito no palco, nada pode ser pouco.



O Ponto Fixo e o Jogar em Menor e Maior
Este é também um dos pressupostos básicos de Gaulier, creio eu que tem grande influência de Lecoq. Há em Lecoq um princípio que diz algo como “para que haja movimento, é preciso que haja um ponto fixo”. Para Gaulier há diferentes pontos fixos no trabalho de um ator. À princípio, poderíamos pensar que o ponto fixo se trata de um virtuosismo corporal, o que podemos ver por vezes em números de mímica, por exemplo. Mas a relação é bem mais complexa do que isso. Philippe não costuma explanar muito sobre conceitos que utiliza para trabalhar em aula (como ponto fixo, prazer, cumplicidade e outros), mas um dia, falando sobre a questão do ponto fixo, disse que “na tragédia, o destino é um bom ponto fixo. No bufão, a deformação física é também um bom ponto fixo para o ator”. Sem me comprometer com o que Philippe pensa sobre o ponto fixo, posso dizer que reconheço que este princípio está organizado em diferentes níveis de seu trabalho. Quando dois atores vão para a cena, um jogar em maior e outro em menor, eu poderia dizer que o que joga em menor é o ponto fixo do que joga em maior. Não se trata necessariamente de um jogo que opõe status dos atores, mas muito mais uma questão de limpeza de cena, de saber manter o jogo consigo em estreita relação com o colega de cena e com a platéia, a ponto de poder passar este mesmo jogo para o outro ator depois. Um ator é sempre o suporte do outro. Isso no início de Le Jeu é tão radicalmente trabalhado que Gaulier pedia em alguns dos primeiros exercícios que o ator que estivesse jogando em menor não se movesse, simplesmente não fizesse nada, até que voltasse a jogar em maior. Nos primeiros dias eu sentia uma sensação horrível em relação a estes jogos, me perguntava “tá, mas se não é para não fazer naaada, por que estou aqui em cena com outro? Por que não deixar somente o outro?” Sei que muitas vezes podemos não fazer nada e estarmos plenos em cena, mas a questão trabalhada por Gaulier não é exatamente esta. Existe uma dupla aprendizagem em relação ao saber ter no outro ator um ponto fixo sobre o qual posso eu evoluir em cena e também saber transformar-me em ponto fixo para que o outro ator evolua sobre mim. Como a velha história dos “atores escada”... Mas aqui todos servem de escadas, uns para os outros, é um aprendizado precioso ser o que sobe e ser o que dá suporte à subida do outro.
Enfim, muitos outros elementos poderiam ser lidos sob a ótica do ponto fixo: poderíamos dizer que a platéia é um ponto fixo, na medida em que o ator nunca pode entrar em uma “viagem” só sua, em geral todos os exercícios pedem esta “consciência” de que você está apresentando alguma coisa; o personagem pode ser visto como um ponto fixo sobre o qual o ator evolui, Philippe sempre ressalta a importância da diferenciação entre ator e personagem, e diz, entre outras coisas, que devemos ter o personagem como um boneco que deveríamos manipular, nos divertindo com ele; etc. Sem querer fechar questões, mas, pelo contrário, abrir o máximo possível delas, eu diria que o ponto fixo é sempre uma âncora na qual o ator “se segura”, algo que mantém o contato do ator com a platéia. E é preciso afirmar que também existe um claro ponto fixo corporal no trabalho de Gaulier, mas não como o ponto-fixo-virtuose da mímica, mas como uma noção que o ator deve aprender a ter em relação à sua movimentação e ações, no sentido de que este não pode “agir em devaneio”, sem controle e ensimesmado. É notório que Philippe aprecia uma clareza naquilo que o ator faz: a hora de começar, de se inflamar, de retornar e de terminar.

Cumplicidade
Em Le Jeu, o trabalho sobre a cumplicidade está muito relacionado ao Jogar em Maior e em Menor, noção já exposta acima. Mas em Le Jeu trabalhávamos com muitos jogos onde a cumplicidade era exigida também sob outras formas. Philippe muitas vezes propunha jogos como “dançar em dupla com uma bola entre as testas”, “dançar em dupla divertindo-se o máximo e piscando para ele caso sua dupla estivesse chata”, “improvisar um número em duplas que deveria ser realizado como se existisse há dez anos” etc. Além destes, Philippe também propõe exercícios competitivos, com uma exigência de agilidade corporal e de uma concentração apurada e total no que se está fazendo. Mas tanto nos exercícios descritos primeiramente quanto nos “competitivos”, existe sempre um pano de fundo que está relacionado ao nos divertirmos juntos... Uma competição nunca é de fato uma competição, embora tenha que ser feita de verdade, não podendo ser “fakeada”. Mas em muitos dos exercícios competitivos, por exemplo, Philippe dá um Stop e pede cumplicidade, pede que os atores se olhem nos olhos, e depois retorna ao jogo. Pessoalmente, penso que Philippe deseja lembrar-nos sempre que estamos ali construindo um trabalho juntos numa “grande e séria brincadeira”. Por isso, num jogo competitivo, por exemplo, o ator nunca pode isolar seu foco sobre o ganhar-perder, mas sim notar que o nível de engajamento de seu corpo e de sua atenção, e, principalmente, o divertimento que isso gera, é a base para a construção de qualquer trabalho, e que, mesmo quanto compete, o ator compete COM um colega e nunca CONTRA este, e aí tem uma distância bastante significativa. Neste sentido, Philippe quer que nos mantenhamos sempre como “esportistas amadores”, que fazem aquilo unicamente por prazer. A cumplicidade, como todos os elementos colocados aqui, também pode ser relacionada com outras esferas do trabalho de Gaulier... Poderíamos dizer que é sempre trabalhada na relação não só com o (s) colega (s), mas também com a platéia. O ator também, de certa forma, deve manter um elo que convide a platéia a jogar consigo próprio.


Algumas outras noções em Le Jeu:

You push to much:
Quando o ator está em cena realizando uma improvisação, por exemplo, e, de alguma forma, está “forçando a barra” para fazer rir, para emocionar o outro, para agradar a platéia. Nestes momentos o ator pode cair numa apelação idiota, numa agressividade, numa afobação e falta de clareza das ações, num jogo intelectualizado e explicativo etc.

You don’t give enough:
Quando Philippe trabalha com um ator, lhe propõe caminhos, mas de alguma forma o ator não coloca-se inteiro no caminho apontado por Gaulier. Isso pode acontecer porque o ator pode se constranger, discordar do caminho de Gaulier e insistir em manter um caminho que não vinha “dando certo” etc. Philippe é muitíssimo exigente com todos, é difícil ele baixar seu nível de exigência quanto ao que vê em cena por conta de um ator que, por exemplo, tem menos experiência e está enfrentando muitos problemas técnicos em relação à sua atuação. Apesar disso, tenho notado que, em geral, no início do trabalho, ele coloca a exigência lá em cima para todos, e, se aqueles que estão enfrentando mais dificuldade se colocam no mesmo padrão de exigência que Philippe propôs, percebo que Gaulier sutilmente dá um tempo maior pra que este ator descubra seus caminhos e supere suas limitações técnicas, e assim, por vezes, ele acaba pedindo do ator aquilo que ele pode dar. Mas estas são situações específicas, pois, em geral, Philippe sempre quer o impossível do ator, o maior brilho e beleza que este pode ter. E, como não poderia deixar de ser, Gaulier é extremamente sincero quando um ator não consegue atingir este ponto exigido por ele, bate seu tambor e diz algo como “obrigado por este momento horrível que você nos proporcionou”.

O Mister Flop
Embora Gaulier não tenha falado muito no FLOP em Le Jeu (creio que ele utiliza-se do termo mais no trabalho com o Clown), um dia depois da aula ele falou um pouco do “fenômeno” em questão. Como os outros elementos de sua pedagogia, o flop faz parte do conjunto de elementos se apresentam em Le Jeu. Basicamente o Flop é a sensação que temos quando fazemos algo que definitivamente não é interessante em cena. O flop é a sensação do fracasso. O fracasso é algo que permeia todas as aulas de Gaulier, você fracassa nas improvisações do Le Jeu, nos trabalhos da Máscara Neutra, nas cenas de Tragédia, enfim, em tudo você está sempre fracassando. A grande questão é como você lida com esta sensação. Fica claro que para Gaulier o fracasso é um dos grandes mestres no trabalho do ator. Neste dia em que falava sobre o Flop, Gaulier disse “todos tem que flopar... Mas tem gente que não quer flopar por nada (isto é, quer sempre ser bom)! E estes são totalmente idiotas! Quem não quer flopar é um total idiota!”. Gaulier parece querer que o ator tire alguma lição do flop e do fracasso, mesmo que precise entrar nele quantas vezes necessário. A postura que Gaulier parece condenar é a demasiado egóica, é a do ator que começa a se achar tão bom e preparado que, embora esteja fazendo uma merda em cena, acha que está sendo brilhante e defende seu trabalho baseando-se em alegações intelectuais ou naquilo que fez de bom anteriormente. Isso é o que poderíamos chamar de “negar o flop” ou “não querer flopar”. Para o ator é importante “receber o flop” (dentro e fora de cena), deixar-se afetar com ele, e, então, propor algo novo e com nova energia.


Bem amigos, creio que agora podem ter uma noção interessante sobre o trabalho de Gaulier em Le Jeu. Convido todos a jogarem comigo neste blog, através de comentários e críticas, todos sempre bem-vindos!
Beijos,
Rodrigo.